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QUALQUER COISA QUE SUPONHO CERTA, OUTRA VEZ - MANUEL GRAÇA DIAS

Reprodução na íntegra do artigo de opinião para o Jornal Público - Caderno Ípsilon

15 de Outubro de 2013




Essa primeira visita decorreu, entre parcimoniosas fotografias (longe, ainda o tempo da “abundância” digital) e alguns desenhos, numa descoberta deslum- brada de um mundo muito concentrado de maravilhosos sinais e manifes- tações de vernáculo periurbano.

Nas aulas, discutimos as razões da nossa adesão: era, sobretudo a “liberdade”, liberdade no manuseamento dos vários signos característicos da arquitectura, no modo como os materiais dis-poníveis, trazidos das obras e das demolições da cidade em frente, se encaixavam uns com os outros nas barracas ainda maioritariamente em madeira, eram as janelas descentradas e desiguais a desafiarem as simetrias desejadas, os muros forrados a cacos de azulejos ou conchas, os arcos antecedendo alpendres abrigados para as sardinhadas de Junho, o Sol já baixo, sobre a praia.

Era uma aldeia de surpresas, uma Avenida de Milionários pobres, um sonho de Verão em tábuas azuis sobrepostas, com os telhados de duas águas fechan- do caixas alegremente distribuídas ao longo dos becos estreitos com curvas; eram os quintais de areia e desperdícios de mármore que ralas buganvílias vermelhavam na costa tranquila, olhando Lisboa do lado de lá da foz do Tejo, o Bugio vigilante.

mínimo de meios. Pode-se fazer ver as mesmas coisas de um modo diferente” (Venturi, 1966). E as casas da Cova do Vapor, com as recicladas janelas trun- cadas e as portas baixas, faziam- nos ver aqueles planos, que eram as suas coloridas paredes, de “um modo diferente”.


Muito mais tarde soube da (segunda) origem da povoação, da fuga ao mar da foz para aquele troço do território, das barracas dispersas, das décadas de 1930 e 1940, trazidas a carros de bois para mais longe do Bugio; da fiada de seis, mandada construir em 1959 por Henrique Tenreiro que era quem dirigia a “Junta Central das Casas dos Pescadores”, o primeiro núcleo “estruturado” a inaugurar o novo lugar que já existira mais para norte, a apenas 500 m do Bugio, a ilha farol. O aglomerado foi crescendo, barracas de madeira de pes- cadores e vizinhos, outras trazidas inteiras de praias entretanto vencidas pelo encontro do Oceano com o Tejo.

Mas era também a escala, o doce tamanho económico, tão ao contrário das moradias burguesas gordas impantes de tantos telhados que já pontuavam o Algarve ou a costa alentejana, aqui e ali. A “escala”, a pequenez dos meios, a aduzir o futuro do aldeamento pequeno encravado na esquina de praia, de- pois do pinhal, que tão bem exemplificava os temas de Robert Venturi que líamos nas mesmas aulas (Complexity and contradiction in architecture, 1966, e Learning from Las Vegas, 1972). Era a celebração da arquitectura anónima, a festa dos elementos banais dispostos noutros contextos que Venturi (e Vi- cente) exigia(m) para uma arquitectura nova e significante. “Modificando ou juntando elementos convencionais a outros elementos convencionais, pode-se, por uma troca de contexto, obter um efeito máximo com um mínimo de meios. Pode-se fazer ver as mesmas coisas de um modo diferente” (Venturi, 1966). E as casas da Cova do Vapor, com as recicladas janelas truncadas e as portas baixas, faziam- nos ver aqueles planos, que eram as suas coloridas paredes, de “um modo diferente”.

Muito mais tarde soube da (segunda) origem da povoação, da fuga ao mar da foz para aquele troço do território, das barracas dispersas, das décadas de 1930 e 1940, trazidas a carros de bois para mais longe do Bugio; da fiada de seis, mandada construir em 1959 por Henrique Tenreiro que era quem dirigia a “Junta Central das Casas dos Pescadores”, o primeiro núcleo “estruturado” a inaugurar o novo lugar que já existira mais para norte, a apenas 500 m do Bugio, a ilha farol. O aglomerado foi crescendo, barracas de madeira de pes- cadores e vizinhos, outras trazidas inteiras de praias entretanto vencidas pelo encontro do Oceano com o Tejo.


Fazia-se perto um hotel, por alturas do 25 de Abril, que hoje será uma ruí- na inacabada enterrada, submergida pelas águas, pelas areias, pelo pinhal, dádiva para arqueólogos do futuro. Mas a obra do hotel rapara a mata que separava a Cova do Vapor de São João da Caparica e a “malta do campismo” começou a cobiçar mais o lugar. Abril, que foi liberdade em todos os dia-a-dias, permitiu, durante uns tempos, um maior crescimento da aldeia, agora enca- rada como praia das férias ou dos fins-de-semana das profissões modestas. Também que se endurecessem as casas de madeira com tijolo à volta, que se solidificassem os “avançados” com betão; mas sempre com a mesma ingénua alegria, com a mesma pequena escala tranquila de quem não quer deixar de pertencer ao todo e o compartilha, num contributo simples e negociado ape- nas com a paixão das conchas e das cores sobrantes das latas de tinta à soca- pa. Também soube do Copcon ali chamado para obstar a desmandos que se anunciavam no alastrar rápido do núcleo inicial; Copcon que terá demolido algumas das casas mais acintosamente abusivas que fugiam, já sem nenhuns pescadores, pelos pinhais em volta.

Em 1987, depois de regulares visitas com amigos e arquitectos, sobretudo de fora, que levava para testemunharem aquela organicidade tão forte de signos e significações, aquela embaraçante rudeza exacta e equilibrada, escrevi um texto, ilustrado com fotografias a preto e branco, a que chamei “Cova do Vapor: Qualquer coisa que suponho certa” (Arquitectura portuguesa, 5a série, no 11); era uma homenagem, uma tentativa de divulgação, mas expressava bem a per- gunta a que, até hoje, não sei responder. “Não estudei o Manuelino mas posso, com conchas, frisar estes arcos trilobados, estes colunelos, qualquer coisa que suponho certa e com que falo aos meus amigos.”

Supunha (suponho) certa sem saber bem explicar porquê, para lá de voltar a referir a liberdade dos arranjos, o vocabulário encarado como possibilidade de comunicação, para lá de voltar a falar da “escala”, do acerto dos tamanhos e das tão desarmantes quanto “erradas” proporções.


Em 1996 voltei para registar a Cova do Vapor em vídeo, para um programa so- bre arquitectura que assinava para a RTP2. A aldeia agora já quase só de férias, inserida num documentário mais alargado, “Arquitectura sem arquitectos”, mostrava-se de novo através das casas mais esplendorosas, dos portões mais investidos, dos alçados mais cheios. E eu, através dele, continuava a procurar perceber o que supunha certo, porque o supunha certo.


No passado domingo participei numa conversa promovida pela “Associação Ensaios e Diálogos” que, com os arquitectos do grupo francês Exyzt e em par- ceria com a Associação de Moradores da Cova do Vapor, durante este ano, dinamizou a construção de uma estrutura (Casa do Vapor), em madeira, a par- tir de material reciclado de outras intervenções efémeras, também realizadas pelos mesmos arquitectos em Guimarães, durante a capital da cultura.

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